Uma jornada ágil, baseada em quick wins, é uma receita simples, mas eficaz quando falamos em transformação digital. Evitar soluções demasiado grandes, que nunca serão utilizadas, é um erro a evitar. Carlos Latourrette, CEO e fundador da Latourrette Consulting e da Bizdocs, partilhou com a IT Insight a sua experiência no apoio à transformação digital das empresas e deixa algumas recomendações aos gestores que ainda estão a dar os primeiros passos.
Da sua experiência com empresas de diferentes áreas, como avalia a preparação dos gestores para este processo de transformação que acelerou com a pandemia?
Há uma panóplia de estágios e maturidade muito diferente. Nem sequer consigo mapear entre pequenas, médias e grandes empresas. Realmente, a pandemia, e o facto de as pessoas terem ido para casa em teletrabalho, apanhou toda a gente de surpresa. É impossível as pessoas estarem muito preparadas para isso, eventualmente algumas empresas – por alguma razão que não teria nada a ver com o que se passou nos últimos dois anos – poderiam estar mais bem preparadas para esta situação.
Há aqui vários fatores. Os últimos anos têm sido férteis em oferta, e a quantidade de soluções que são apresentadas no mercado tem crescido de forma gigante. A forma de comercializar também teve de ser diferente. As ações comerciais da indústria da tecnologia, que tem muito a ver com a venda relacional, tiveram também de passar a ser uma venda digital.
Fomos todos massacrados pela oferta de soluções que se calhar não estávamos tão abertos para ouvir falar. Mas penso que há um grande desafio para todos os gestores, que é conseguirem absorver, entender, e avaliar, o que são todas as soluções que lhes aparecem à frente, quando existe o jargão da transformação digital, e cabe lá tudo.
A escolha das melhores soluções é, portanto, um desafio…
Acho que há aqui realmente um grande desafio por parte de quem está a tomar esse tipo de decisões, porque as pessoas estão a fazer um grande esforço. Falar da digitalização dos processos de negócio em sentido lato, é apenas um cantinho, há imensa oferta à volta disso. Existem empresas especializadas nestas componentes, mas como foi um boom, toda a gente começa a falar nisto. As empresas grandes compram empresas destas áreas, e muitos novos investimentos. Entender quais as soluções que estão no mercado torna-se, de repente, um desafio grande para as empresas e para os empresários.
As próprias empresas que estão a oferecer estas soluções e serviços também apanharam isto de repente. Elas próprias têm de começar a oferecer soluções nesta área de um dia para o outro, e muitas delas sem preparação.
Penso que, independentemente do tamanho das empresas, há esta abertura quase forçada para falar de todos estes temas, a capacidade de os avaliar corretamente tem a dificuldade da massificação da informação e da oferta que existe, o que torna muito difícil a compreensão de quais são as ferramentas ou caminhos. Acredito que há até coisas que poderiam estar a acontecer mais depressa e que não acontecem devido a esta possível confusão.
Nota diferenças entre as empresas portuguesas e outras empresas de países com que já lidou?
Há diferenças e, na minha opinião, tem a ver com algo muito simples, que é o estágio de preparação, conhecimento ou awareness que existe em algumas regiões. Penso que em Portugal temos um défice muito grande de conhecimento do que a indústria está a fazer realmente.
“No início da pandemia houve uma corrida, era urgente colocar as pessoas em casa, e foi um desafio desde as pequenas às grandes empresas. As grandes organizações, até por questões de segurança, terão tido mais dificuldades a fazer isso” |
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Se olharmos para o nosso panorama de eventos e ações que focam no tema da tecnologia, e temos a Web Summit, que é para especialistas, não é para a maioria dos empresários. E, claro, isso depois tem impacto na falta de preparação que temos. Esses eventos não chegam a Portugal, e não há cultura nas pequenas e médias empresas de ir assistir a esses eventos. Logo aí, surge uma diferença grande. Basta olhar para o Brasil, onde existe mais divulgação e eventos setoriais muito grandes na área da tecnologia, e onde também existe um fenómeno muito grande que é a terceirização. É um fenómeno em que são as empresas de outsourcing que influenciam a forma como as organizações compram e como estão condicionadas para comprar tudo numa lógica de serviço, de subscrição.
Isso também altera muito a forma como as empresas compram e como estão preparadas para avaliar as soluções. Nomeadamente, quando temos de oferecer as soluções como serviço, estamos a passar uma grande parte do risco para o nosso lado, porque depois vamos ter que criar outra solução e vendê-la como uma subscrição, sendo que se algo correr mal, a subscrição pode ser cancelada.
A preparação das pessoas tem um bocado a ver com estes fatores. Por um lado, a maior ou menor disposição de ver o que se está a fazer no mundo, de forma muito mais direcionada e verticalizada pela indústria, que em Portugal existe pouco, e por outro, a questão de como se compra, se é mais tradicional como um projeto, ou se é mais compra de um serviço.
O trabalho remoto veio acelerar os processos de digitalização, mas para continuar o processo de transformação digital é preciso ir mais além, ao core das empresas. Tem notado que há mais procura de soluções para transformar a organização desde o seu interior?
Sim, sem dúvida. No início da pandemia houve uma corrida, era urgente colocar as pessoas em casa, e foi um desafio desde as pequenas às grandes empresas. As grandes organizações, até por questões de segurança, terão tido mais dificuldades a fazer isso.
Nessa altura, foi necessário fazer tudo muito depressa, sem olhar muito a processo ou otimização, e agora sim, está-se a olhar para o que isso está a custar, embora fosse algo urgente de fazer.
Um dos exemplos que temos sentido muito no pós-pandemia até tem vindo das áreas financeiras, onde o tema do processo de automatização das contas a pagar, o processo de tratamento das faturas e de validação, são processos que têm vindo a ser muito solicitados.
O problema é quando começamos a digitalizar as operações, as logísticas, alguns processos de integração até com lojas online, por exemplo, e começamos a querer avançar com outras áreas de negócio, mas o departamento financeiro começa a ser o problema. Depois queremos fazer coisas e não conseguimos porque não é possível faturar ou cobrar, não conseguimos fazê- lo à velocidade do negócio, e isso começa a ser um problema.
É aqui que temos visto uma procura muito grande, para automatizar uma série de processos de backoffice para que não seja o entrave. Este é um exemplo de coisas para as quais se estão a olhar agora no pós-pandemia.
“A informação é tanta e o jargão é tão abrangente, que se não capacitarmos as empresas com pessoas com conhecimento e experiência para poderem encabeçar estes projetos por dentro, elas vão ter muitos problemas” |
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Quais são as soluções mais urgentes para as empresas?
Acredito que nos últimos anos tem vindo a ser feito um esforço muito grande de tratarmos algumas questões relacionadas com os aspetos mais core da empresa, com as áreas de produção, com as áreas comerciais, com sistemas de apoio à produção, tem sido um tema bastante enfatizado. Tem havido muito investimento nestas áreas e também nas da automação e digitalização de processos.
Penso que esse é um fator chave e é essa a peça que falta. As empresas devem começarem a olhar mais para a digitalização dos processos de negócio que os vai ajudar a mapear os seus processos atuais, e depois a fazer um processo muito mais eficiente em termos de tecnologia. Isto vai ajudá-los a dar o salto, não apenas tecnológico, mas um salto profundo sobre com as organizações se vão comportar e ser mais eficientes. Essa é a área que vejo que vai ter mais impacto nos próximos tempos na melhoria da produtividade das empresas.
Até que ponto é que as empresas poderão beneficiar do PRR e das verbas alocadas à transição digital?
Se soubesse responder a isso acho que tinha aqui muita gente a bater-me à porta. Com o pouco que sabemos do que se está a passar, ouvimos falar em clusters de inovação, onde as empresas podem ter uma espécie de catálogo de prestadores de serviços ou de soluções para poderem usar. Acho que estamos todos na expectativa sobre o que querem de facto dizer essas iniciativas mais globais, nada disso ainda está feito, e não se sabe muito bem como é que vai ser entregue e como as empresas vão ter acesso a estes fundos.
Tenderia a dizer que se as empresas estiverem à espera de fazer alguma coisa só porque há fundos do PRR, se for essa a grande motivação, vamos depender em grande escala da oferta de serviços que vão aparecer nesse catálogo, em vez de olharmos para isto de um ponto de vista mais interno e percebermos que essa mudança terá de começar primeiro na empresa.
Só depois, então, se tivermos a visão de que há necessidade de mudarmos os nossos processos, irmos à procura de soluções que nos ajudem a implementá-los, e essas soluções poderão estar ou não, dentro dos pacotes do PRR.
Tem de haver aqui um grau de adaptação e personalização muito grande. Não sei o que isso vai trazer per se, mas gostaria, e acho que é um fator determinante, que as empresas investissem em recursos internos com capacidade para ter este pensamento e terem estas discussões internamente. Isto é importante para perceber o que está a acontecer, quais são as ofertas que temos, quais as necessidades, e perceber isto além da rama. A informação é tanta e o jargão é tão abrangente, que se não capacitarmos as empresas com pessoas com conhecimento e experiência para poderem encabeçar estes projetos por dentro, elas vão ter muitos problemas.
Faltam recursos especializados nas empresas?
Acho que há uma grande falha na formação dos recursos dos quadros das empresas, sejam elas pequenas, médias ou grandes, para que as pessoas sejam capacitadas para estes projetos e para os implementarem. Isto é um mundo gigante que se começa a abrir e é preciso priorizar e saber por onde começar. Quando entramos neste caminho, não vamos apenas implementar tecnologia, vamos também alterar processos e alterar hábitos. Estamos a testar a tecnologia, mas também estamos a testar como a organização se adapta às mudanças.
Este cenário também pode abrir um pouco as portas ao BPO, à externalização de processos quando não têm os recursos internamente?
Pode e deve. No entanto, carece da mesma capacidade de compreensão do negócio. É preciso termos a capacidade de perceber o que é que podemos ou devemos externalizar, e o que é devemos deixar do lado da empresa e quais são os diferenciais do negócio.
Na minha visão, o BPO tem de ser uma arma que possa ajudar a flexibilizar e a ganhar velocidade, que permita escalar sem ter de aumentar de uma vez os meus custos fixos, mas também é preciso fazer a diferença do que é que nesta digitalização de processos é core do meu negócio ou um fator distintivo.
Que mensagem gostaria de deixar para os nossos leitores?
Temos de começar por dentro, temos de olhar para a nossa empresa e perceber onde é que estão as coisas, independentemente de todo o buzz ou publicidade, só vamos comprar o que realmente precisarmos, tem de haver a resistência a essa tentação.
Temos de perceber qual é o obstáculo ao nosso negócio que está entre onde estamos hoje e para onde queremos ir. Depois de mapearmos isso e vermos estrategicamente para onde queremos ir, a minha recomendação é que procuremos aliados que nos possam ajudar consultivamente a escolher e a discernir sobre as escolhas que existem.
Temos de perceber todo este cenário e adaptar as ofertas ao caso particular, e um dos pontos fundamentais nisto tudo é que as empresas com que se relacionam tenham provas dadas neste tipo de implementação de soluções e ferramentas.
Não desvalorizar o tema da transformação digital e da parte da digitalização de processos. Devemos querer que as empresas tenham experiência na implementação de soluções nesta área, para nos ajudar a fazer este caminho cheio de obstáculos.
E mais uma vez, enfatizar a questão de quando se começa. Deve começar-se por processos que envolvam a empresa o máximo possível, que no início não sejam muito críticos para o negócio e permitam uma curva de aprendizagem. Quando houver uma maior maturidade de aprendizagem, podemos então digitalizar processos de negócio mais críticos. É pensar esta jornada de uma forma segura, mas que seja ágil e baseada em quick wins, do que pensar em soluções gigantes que depois nunca vamos conseguir integrar, ou que quando acabarmos de integrar o processo já deixou de fazer sentido.
Por Fátima Ferrão e Henrique Carreiro in "It Insight", 13.05.2022